
Eu tinha 11
anos e tive o sonho mais impressionante da minha vida. No sonho, era noite e minha mãe conversava
com um senhor na sala. Eu fiquei escondida atrás da parede do corredor ouvindo
a conversa, algo que toda criança curiosa gosta. Até que me deu um estralo! Eu
percebi quem era aquele senhor. Era o meu avô que eu não cheguei a conhecer! Confesso
que me emocionei no próprio sonho como se fosse real, senti o coração tremer e
voltei para o quarto orando. Pedi a Deus que me desse a oportunidade de abraçá-lo.
Como uma linda utopia, ele me chamou na sala: “Adrienne, Adrienne”. E eu em um
profundo receio, sem saber se era verdade, fui devagar, enquanto ele abria os
braços.
De repente, senti o abraço mais sobrenatural que
eu pude vivenciar, no qual já não sabia o que era sonho ou realidade, ficção,
espírito e corpo. Só sabia que o sentimento ultrapassa qualquer limite físico,
material e consciente. Suas palavras no sonho ao me abraçar perduraram no meu
ser como um eco longínquo, a voz de um ancestral firme, poderosa e amorosa.
“Minha
poetisa, minha poetisa” foi o que me disse naquele único momento de avô com a
neta. E foram essas palavras que me definiram como pessoa por toda a minha
existência. Mas não fora meu avô naquele sonho o primeiro a me chamar de poeta.
Minha mãe me chamara assim quando eu tinha 8 anos e fiz os meus primeiros
versos, influenciada pela sua voz doce em cantiga. Antes de eu aprender a ler e
escrever, a poesia já habitava em mim, através de todas as declamações que ela
nos fazia de variados poetas todas às noites.
Era tão
fantástico visualizar cada palavra pronunciada e depois degusta-la em comunhão
no ritmo de uma ciranda atemporal quando todas se estreitavam em ritmo, rito e
rima. A dança perfeita dos sons, das bocas e das mãos. A poesia se manifestava
como um canto mágico e o poeta, para mim, era uma espécie de gênio, vidente e
profeta que tinha a capacidade de ir e ver além, mais do que os humanos comuns.
E exatamente
isso seria o meu avô materno. Ele seria um poeta! E os poetas não morrem! Eles
vivem encarnados nas palavras que escreveram, no ritmo que empregaram, no rito,
no mito, no corpo do poema. Cada poema que ele escrevia era um pedaço do seu
corpo e a poesia que esse poema carrega; um pedaço da sua alma. Eu não o
conheci, Donald Savazoni morreu um ano antes de eu nascer em um acidente
terrível em seu exercício como prefeito. Hoje eu penso que os avós não deveriam
morrer nunca, porque eles representam o nosso singelo laço com a história, ao
mesmo tempo em que transbordam a ternura de um presente eterno. Os avós são
doçura e fazem as crianças serem ainda mais crianças. Mas ao morar 7 anos em
sua casa, justo na minha segunda infância e época das primeiras letras, eu pude
sentir e visualizar a sua presença.
Eu não o via
nos corredores do andar de cima, nem na sala de estar, nem na copa, nem no
terraço, muito menos na cozinha. Meu avô tinha se mudado para o andar de baixo
como se fosse o pai da terceira margem do rio de Guimarães Rosa. De seu salão,
ele não saia. Eu descia escondida dos adultos para ouvir suas histórias. A
primeira que ouvi e li foi Iracema em sua coleção completa de José de Alencar.
Ele também tinha Machado, Shakespeare, Castro Alves, Lobato, Drummond, Vinícius
de Morais, Érico Veríssimo, Camilo Castelo Branco e tantos outros quanto
poderia caber três cômodos só de livros.
Todo dia eu
escapava um pouco da casa para visita-lo. Nesta biblioteca familiar, a força do
ser que ele tinha sido emanava-se de cada página amarelada. Respirar o ar de
poeiras e traças me trazia o seu ar sereno, enquanto o cheiro do livro velho, o
abraço que eu não pude lhe dar. As capas
úmidas eram o seu sorriso tímido. O seu jeito sério e imponente configurava-se em
toda sala principal. Sua máquina de
escrever Olivetti cinza, em cima da escrivaninha de madeira, mostrava a
disposição para o trabalho árduo com as palavras. Suas coleções de chaveiro,
canecas e sua sanfona e seus fascículos de arte nos davam o seu gosto refinado
para o belo. Além de um grande material iconográfico sobre Franco da Rocha e um
caderno com os seus escritos que eu tinha pouca coragem de mexer. Parecia que
ali, eu precisava de uma autorização maior, pois naqueles papéis haviam muito
de seu esforço e segredo para fazer da cidade que amava; um lugar melhor e mais
humano. Ele sempre me dava um livro e eu fugia para cima do telhado da minha
bisavó para ler.
Aquele espaço
e a voz da minha mãe foram determinantes para transformar-me no que hoje eu sou
e que nunca mais eu deixaria de ser. Poeta. Eis a minha herança e também a
minha salvação. A sensibilidade de brincar com as palavras fora me ensinada
como a única possibilidade de existir.
Porém, em 1993,
fomos embora daquela casa e eu nunca mais vi sua biblioteca, mas eu não esqueci
do cheiro e da imagem daquele porão, nunca esqueci as capas, os títulos, a
disposição dos objetos e o lugar exato onde cada coisa estava. E como aminha mãe
cuidava daquela biblioteca! Como também ela amava aquele espaço cheio de
mistérios, histórias e conhecimento!
Minha mãe
adoeceu depois de ser a única mulher a se candidatar à prefeitura de Franco da
Rocha e nós perdemos tudo o que tínhamos materialmente. A sociedade a condenou
porque não permitiu que uma mulher, mãe e esposa fizesse política, literatura,
docência, estudasse, trabalhasse, escrevesse e ainda fosse mãe e esposa tudo ao
mesmo tempo. Minha mãe me mostrou cedo como o machismo destrói as mulheres,
como ele não nos tolera crescer, ser independente, fazer história e ainda sim
continuar bonita, inteligente e poderosa. A sociedade quer as mulheres
submissas, dóceis e fúteis, colocadas em segundo plano fazendo papel de
primeira dama, mas nunca de prefeitas, professoras, escritoras, de juízas, de
líderes. Eu prometi a mim mesma que eu seria a mulher o que a minha mãe foi e
que ainda por dentro continuava ser, mas que essa hipocrisia e violência contra
as mulheres não a permitiu atingir sua plenitude.
Depois do ocorrido
coma minha mãe, eu e meus irmãos passamos por muitas dificuldades e humilhações
que poucos netos de prefeito passariam na vida. Fome, solidão, espancamento,
privações. Era comum eu desmaiar na escola e na rua, ser levada para o Pronto
Socorro para tomar soro. A dor do estômago vazio é uma das piores dores que um
ser humano pode sofrer. Em alguns momentos, tínhamos apenas açúcar derretido
numa colher para enganar a fome, enquanto imaginávamos um prato suculento com
vontade de saboreá-lo. Meus irmãos não tinham roupas, o sapato era dividido entre
eles, a blusa de frio era rala, dormíamos no chão em colchões doados e para não
sentirmos frio, nos aninhávamos um nos outros. Nossas roupas eram guardadas em
caixas de papelão. Eu tinha um colega que dividia a marmita comigo na escola
senão eu não almoçava. Mas algo ninguém tirava de mim e esse algo se chamava
poesia.
Essa situação
me ensinou que o que mais importa na vida é o que somos, o que nos tornamos e
não o que temos ou aparecemos. Dinheiro, status, aparência, nada disso vale
mais do que o que há dentro de si, os seus valores, os seus dons e a sua visão
de mundo. Ninguém poderá te arrancar e te tirar o que você é. Isso é o que
realmente lhe pertence e também o que você pode herdar dos seus antepassados.
Apesar da carência econômica, erámos felizes,
porque tínhamos uns aos outros e o carinho e amor incondicional do outro avô
Nilson Morelato. Meu avô paterno ganhava pouco, mas não media esforços para cuidar
dos oito netos e passar um pouco da sua fantástica história também. “Eu não sou
cachorro” ele dizia, enquanto fazia papel de pai para nós todos. Ele nunca nos
abandonou e seu acolhimento e seus olhos transbordavam puro amor. E ele não
deixava de falar:"Se seu avô Donald tivesse aqui, ele não deixaria vocês
passarem por isso”.
Adolescente e
estudando no CEFAM, peguei um trabalho de levar mala direta de casa em casa de
uma escola de informática. Eu tinha que andar todas as ruas do bairro do Jardim
Progresso de Franco para entregar a propaganda da escola nominalmente. Mas eu
não esperava no que eu ia encontrar rua por rua. Eu passava pela Rua Gabriela
Mistral, Rousseau, Av Machado de Assis, José de Alencar, Honoré Balzac, Emílio
Zola, Camilo Castelo Branco, Homero etc. Mais uma vez entendi o que se passava.
Eu estava passeando pela biblioteca do meu avô, mas em alto relevo.
Naquela mesma
época, visitei a Secretaria de Cultura por estar participando de um concurso de
contos e descobri no chão do corredor do órgão, algumas caixas com livros doados.
Olhei bem e pareci reconhecer as capas e títulos. Parei, fitei novamente e
decidi abrir alguns livros com as minhas mãos. De repente, reconheci um desenho
meu de criança, uma menininha com vestido cheio de babados! Só eu desenhava um
vestido assim! Não hesitei, decidi furtar ali mesmo aqueles livros que por
história e afeto deveriam ser meus.
Não seria a falta daquela
biblioteca que me faria parar de estudar, pois o espírito das letras que dela ecoava
já morava em mim. Nos pertencíamos. Assim, eu vendia coxinhas na escola feitas pela
minha vó paterna com o objetivo de arrecadar dinheiro para comprar os livros
que eu precisava ler para o vestibular e pagar a taxa da prova.
Procurei fazer um cursinho
popular pré-vestibular da PUC, mas não passei na seleção econômica, porque o
cara que estava selecionando era da região e viu o meu sobrenome: “Savazoni e
Morelato? Das duas famílias mais importantes de Franco da Rocha?” Ao final, eu
agradeci não ter passado, porque eu fui no mesmo cursinho, em uma aula
experimental, e fiquei o dia inteiro sem comer (o cursinho era integral aos
sábados), pois não tinha 3,50 para comprar um almoço. Mas nunca esqueci do seu preço.
Não foram os
3,50 que me evitaram de passar na UNESP. Eu entrei e cheguei em Araraquara como
eu bem digo com a roupa do corpo, mas com o coração e alma preenchidos pela história de vida que meus avôs me deram de luta, superação, perseverança e, no
caso do Donald, amor ao estudo. Fiz a faculdade graças ao exemplo que eles
deixaram e não ao dinheiro. Terminei Letras, fiz Mestrado e Doutorado em
Literatura, publiquei 3 livros e tudo o que eu mais queria era que o meu avô
materno tivesse me visto pelo menos uma vez e que sentisse orgulho de mim como
eu sinto todos os dias dele. Talvez ouvir como em um sonho: “Minha poetisa,
minha poetisa”.
Como diz um
poema seu e que eu recebi recentemente (voltaste para a família vô), escrevemos
para superar a morte. A Literatura existe para transcendê-la. E toda vez que eu
escrevo uma poesia, eu me deparo com o cordão umbilical que me liga a ti, bem
como à voz da minha mãe terna e doce. Superamos a morte meu avô, tu já não
morreste mais! Seus poemas comporão um livro! És vivo também em cada um dos
seus netos batalhadores e orgulhosos de ti. Enquanto eu escrevo como forma de
te dizer eu te amo! A poesia sela nosso abraço no infinito.
Minha Irma, suas belas palavras me fizeram chorar ao lembrar da nossa infância não por aquilo que não tivemos, mais sim nos que tornamos,tudo isso fez nos se fortalecer, a melhor parte da vida é ver quem realmente somos, eu estou muito orgulhoso de ti minha poetisa Adrienne pela maravilhosa mulher que se tornou pelo seu grande empenho em nos fazer ter um pouquinho de dignidade e de nos trazer a grande esperança. Isso tudo você fazia aos seus irmãos quando visitava e nos os irmãos mais novos trazia o nosso caderno para você olhar, ou quando era um aniversario e voce nao esquecia enviando um livro. Isso tudo me deu muita força para me tornar uma grande pessoa de Carater.
ResponderExcluirSaiba que te Amo muito..
Linda Conto de fraterno Amor sem fim! Parabéns Adrienne. Bonfilio Ferreira
ResponderExcluirPoetisa Adrienne, "superasse" a morte, transpusestes coisas árduas, como mágica o livro com desenho retornou a ti; com docura e firmeza herdada de sua mãe, continue escrevendo sonhos,sentimentos, compaixão em sua trajetória.
ResponderExcluirSeu livro de vida, um exemplar único de estímulo e superação do caminhar ereto, obstinado e marcante onde a escrita transborda nossas percepções e nos revela quem somos... Creio que a menina de vestido era vc, ali dentro do livro, segura entre letras e historias e hoje as letras e historias estão dentro de ti, em continuar sua biblioteca pessoal poetisa...
Muito lindo seu texto em lembrança dos antepassados,e suas heranças, em seu livro me indentifiquei vários capítulos.
Um forte abraço,- menina do vestido, letrado e colorido -
Adriane, eu sei de suas origens, pois conheci seus avós e suas histórias. Fui seu professor no Cefam e pude ver de perto seu talento em poemas que escreveu e escreve. Vi também as dificuldades financeiras que viveu e relatas com tanta crueza e, ao mesmo tempo, poeticidade. Parabéns por sua resiliência e ter vencido tantas etapas com ombridade, sem deixar e nem esquecer suas origens.
ResponderExcluirProfessor querido. Saiba que vocês todos estão guardados com muito amor no meu coração. Marquei vocês justamente porque não esqueço o empurrão que me deram, principalmente a vaquinha que fizeram para que eu pudesse pegar o ônibus e ir fazer a minha matrícula na UNESP, fora o multirão de alimentos que a escola fez campanha uma vez para a minha casa.Além de tudo isso, a formação humana, política, crítica, literária, científica que o CEFAM me deu que digo, sem pestenejar, que foram as mais importantes da minha vida. Minha dissertação de Mestrado dediquei a vocês! Obrigada.
ExcluirMuito lindo Poetisa, me emocionei aqui!!!
ResponderExcluirOs caminhos tortuosos são para valorizar a caminhada!!!
Parabéns !!!!!
Di que texto maravilhoso. Fui transportada para a casa da vó Dircinha, num momento em que a mamãe cantava para eu dormir. Depois fui para o campo de aviação e pude sentir o gosto do pão com margarina e café com leite que o vô fazia para nós.
ResponderExcluirDe repente fui sentindo um amor tão grande por tudo que vivemos e uma gratidão infinita por estar onde estou hoje, por cada um de nós estar onde estamos.
Gratidão também por ter você em nossa vida, muitas das vezes você era quem nos trazia a segurança e esperança de um futuro melhor. Você fazia e fez a gente acreditar que poderíamos ser o que quiséssemos, bastava estudar e lutar por nossos sonhos.
Obrigada por esses minutos de volta ao campo, de volta a sentir o vô Nilson e sentir o abraço do vô Donaldo através das palavras descritas em seu sonho que hoje são estrofes, rimas e exclamações de realidade, mas nunca ponto final.
Te amo.
Parabéns por tudo que conquistou.
És merecedora.
Todas as pessoas deveriam ter uma Didi na família.❤️
Sua história é maravilhosa
ResponderExcluirBom dia, tudo bem? Estou a procura de uma foto do Sr. Donald Savazoni quando prefeito de Franco da Rocha em 1977 para uma pesquisa de trabalho, saberia me indicar onde posso conseguir? Obrigada.
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