segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Oração dos Campos



Quero pedir aos céus e a todos os ventos

Aos mares e as estrelas do firmamento,

 Aos vaga-lumes de todos os campos

Um só lamento e um aceno de Deus.

 

Para que a Terra tenha brilho e suspiro

Para que as estradas sejam acesas

E todos os caminhos limpos de mágoas

E a natureza seja: o sonho e o descanso.

 

 E que paz revisite a face do planeta

Através do amor, do belo e da pureza.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Ser humano e o meio ambiente

https://www.youtube.com/watch?v=2QXOSHMyHfo 


Audiência pública sobre a pulverização aérea com agrotóxicos em Araraquara em que eu falo sobre o ser-humano e o Meio Ambiente.


Falo a partir de 1 hora e 42 minutos.

Divino




Divido as amoras

 com os pássaros,

 recolho as do chão

 já bicadas e misturadas

  com as folhas.


Folhas entrecortadas

sombras entre ninhos,

beija-flores dançando

as amoras nos dedos

manchando de vinho.


Não há alimento

mais puro e terrestre

do que este.







domingo, 20 de setembro de 2020

Biografia

 

Resultado de imagem para parque estadual do juquery

Sou filha do Cerrado

Por isso eu tenho:

os pés rachados,

os braços tortos,

a pele grossa,

a alma em chamas,

os sonhos ingênuos,

o olhar pleno de horizonte.


Sou filha do Cerrado

Sei me isolar nos campos,

igual ao lobo guará,

fujo da maldade dos homens.


O Cerrado me pariu

torta e tonta na vida,

O sol intenso no peito,

as águas subterrâneas

jorrando bicas nos olhos.


Por isso,

não sei a malícia

dos que querem ser espertos,

nem a falsidade

dos que querem ser superiores,

pisando nas ervas mágicas

que curam, principalmente,

a falta de cuidado e sentimento.


Sou filha do Cerrado

custo a entender este mundo,

em que o coração

vale menos do que a sombra.

Em que as raízes são cortadas

e que todo céu é esmagado

pelos muros do medo

e da contenção do desejo.


Continuo...

como uma seriema querendo asas,

como uma coruja que se esconde da noite,

como uma raposa caçada que chora,

uma jaguatirica assustada

que não sabe a sua real beleza.


O Cerrado em mim

escorre flores e lágrimas,

mato e capim,

lua e sapos,

vaga-lumes e sacis.

Enquanto eu neste mundo

da guarita para cá,

sou pária.






sábado, 19 de setembro de 2020

Rima contra o Latinfúndio.

 


Eu queria entender a cabeça 

de um latinfundiário,

seu cérebro reduzido

seu corpo atrofiado.


Eu queria entender o olhar

de um latinfundiário,

sem nenhuma espécie de brilho

seu jeito mecanizado.


Eu queria entender melhor

o latinfundiário,

sua falta de princípios, 

suas ideias de mentecapto.


O latinfundiario é um energumeno

tem a fome de um arrenegado,

veste o luto, não tem sonhos,

descarado, vagabundo, alienado.


Se acha sábio, o latifúndio

mas é o que há de mais atrasado,

colonizador, capitanias, 

feudalismo nesta terra agigantado. 


O latifúndio não tem fundo

não tem limites, é autocentrado,

não alimenta, não mata a fome

só engole tudo que é mato.


O seu sinônimo é deserto

deserto cana, deserto pasto,

eu queria entender

a cabeça de um latinfundiário


A sua ânsia de grana,

o seu desejo de desgraçado,

Midas da morte, ele não sabe

que é apenas um retardado.


Não tem alma, não tem vida

não tem espírito, é desalmado,

o latinfundiário não se entende,

 oco e vazio, ele é desarrazoado


Desmiolado, disparatado.

O latinfúndio é o lado

mais perverso e trágico,

o cu cru do mundo.









sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Pantanal de Marcos Viana

 Música que lembra o que estamos destruíndo  



https://www.youtube.com/watch?v=pOhs2MjyrmM&feature=share&fbclid=IwAR2X7taf1LbHpMVmQlt66JntKJmMVtox658Fx3aRuQKee-UNYw15GO-A81U  

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Sobre Pântanos e Poemas





Quando vejo o Pantanal morrendo em chamas,

pergunto-me: qual o direito que tenho à vida?

Quem foi que determinou que o ser humano

vale mais do que as cobras, os jacarés e as onças?


Qual o sentido de nos protegermos tanto?

Somos parte do abismo, somos ocos e ecos,

somos a chama da ambição corrosiva

que destrói, mata, seca, queima o Pantanal

enquanto minhas lágrimas são poucas.


Não sou mais importante que um macaco

uma anta, uma capivara, um jabuti,  um tatu.

Só sei escrever poesia, estéreis palavras

quiseram um dia em ser o lodo do pântano.


Ah! Se elas pudessem se transformar

em chuva! Uma turbulenta tempestade

que voasse para lá e apagasse a morte...


Eu seria uma nuvem ao menos,

carregada de esperança, flor e semente

do que uma poeta de um choro

 triste, solitário e inútil.





 



domingo, 13 de setembro de 2020

Suivre

 Vivre

avec l'incertitude de la mort glissant dans mes jours

Je suis un nuage, je sais que je flotte comme toutes les ombres,

Je marche doucement sur le sable de mes heures

et comme tout le paysage, je survis dans l'instant

quand je sens le souffle illuminer mon visage.


Chaque minute est un peu de l'infini qui explose

à l'intérieur de l'âme, pour que la vie n'oublie pas

la force qui jaillit des mains et des rêves

de ceux qui n’ont pas peur de le traverser.


Doucement, je sens que je meurs

en attendant la vallée et la colline

de mon éternel désir.

sábado, 12 de setembro de 2020

Semear

 



Eu planto quando não espero plantar. 

 Minhas sementes nascem nas encostas,

 nos meios das outras plantas, nas pedras,

nos cantos dos terreiro, embaixo das árvores.


Eu apenas as jogo, sem nenhuma pergunta

ou lembrança.


Elas simplesmente brotam

sem a permissão das unhas

sem os sulcos dos dedos,

nascem de um leve abandono

pelos ares.


Sementes do alimento do amanhã

sementes de flores imperceptíveis

no dia a dia, sementes de plantas

árvores, brotos do ontem e do sonho

pulam na terra e saltam de todos 

os interiores, de repente.


De um dia para outro aparecem

e nos pegam com um espanto,

um olhar mais doce e vago

diante da delicadeza da vida.


Elas nos semeiam por dentro,

acareciam nossos dedos

e mostram a força de nossas mãos.


Plantando, 

somos devolvidos para a terra

vivos!

Nossa mãe, nossa casa

nosso eu.

.









 A imagem pode conter: natureza, texto que diz "DIA NACIONAL DO CERRADO 11 DE SETEMBRO SINDSAUDE/GO W"

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Saudades

 Observação: Este poema eu fiz quando eu tinha nove anos


Por que a pomba branca é o símbolo da paz? | Super


Eu estou com saudades

do meu avô que morreu.


Eu estou com saudades

dos tempos de paz

em que uma pomba voava

sem ninguém querer matar.


Eu estou com saudades

de quando eu podia voar

e um pássaro cantava

uma bela canção de ninar.


Saudades, ah... Saudades...

são coisas que a gente 

não pode ver

mas pode sentir.

Goiabeira


Tesoura Elétrica F-3010 na poda de goiaba - YouTube


 Goiabeira velha

 Goiabeira antiga

traz perto de mim

       a vida.


  Goiabeira velha

  Goiabeira antiga

traz para perto da vida

      o sonho.


    Goiabeira antiga

     Velha goiabeira

Traz para perto do sonho

   As verdades inteiras.


 Último tronco rachado

 Antigos e velhos cascos

    Goiabeira serena

Sem flores e frutos nos galhos

  Traz a saudade imensa.


Goiabeira velha

Goiabeira antiga

Foi-se realidade

Ficou-se a infância

     vivida.


Ilusões de todas as tardes

de todas as folhas caídas

  Trazem para perto do chão

A imensidão do céu que respira

O tempo finito das árvores.


E eu, pedaço de solidão

vejo em ti os galhos da eternidade

com os quais trancei a canção

  da saudade.


E nas sombras primeiras,

Goiabeira antiga,

Meu sonho fez habitação.


Luz entre os ramos

Séculos que não se adivinha

Pedaços de risos e prantos

ficaram nas folhas secas

  apodrecidas.


São marcas do encanto

Enquanto a minha face

se perde de outras faces

que beberam essa luz

Esses teus ramos, tua raiz.


Goiabeira velha

Goiabeira antiga

Aonde que em ti

Perdeu-se a vida?

Perdeu-se o sonho

E as verdades?

Perdeu-se a infância

E a eternidade?


Ficou a música vivida

dos seus galhos tortos,

Sua luz como cortina

em meus olhos sempre.





sábado, 1 de agosto de 2020

Oração aos rios

Rio Juquery, entre as represas Sete Quedas e Paiva Castro (Sistema ...

Os rios, inteiras passagens de abundância
morrem nesta sociedade do desperdício,
secam sem uma lágrima humana para regá-los,
esturricam de sol e de erosão 
sem um lamento, um canto, um poema.

Os rios são anônimos e invisíveis,
só são lembrados quando se abre a torneira
e nada pinga de seus interiores.

Para o humano, os rios são servos
da sua sede insaciável de matéria
artificial e hipócrita.

Um rio se derrama em esperança para a seca
se derrama em profusão para a noite, 
em espelho para a lua, em horizonte para quem ama,
em sonhos plácidos para quem o comtempla,
um rio é chuva e semente todos os dias.

Os rios cheiram a terra e escondem
em suas profundezas, todas as mágoas
toda a tristeza, e ainda nos ensina
que a união de várias águas pode
transformar nos em grandes.

Gigante é o rio que carrega a todos
carrega o lodo, carrega a matéria morta
carrega as embarcações, o peso que depositamos
em toda a sua força e superfície.

Ele ainda nos ensina
que toda vaidade é afogada
em nosso próprio reflexo.

Mas preferimos matá-lo
por miséria de nossas almas
do que aprender com ele.

Santificado é todo o rito
de sua passagem na paisagem.
Santo todo fio de água que surge
por entre as flores do campo.

O teu nome seja fonte de purificação
para todos aqueles que sentem saudades
e sede do seu  verdadeiro interior. 

Rio que deságua em peixes e mar
seja breve e sereno para aqueles que amam,
seja caudeloso e forte para aqueles que se dissipam
em correntes, seja rio, ritmo e movimento
da divindade para os seres vivos.

Um rio é sempre uma semente,
um cheiro de manhã em névoa
e sonho.









Compreensão

Eu entendi que eu não tinha direito
de pensar me como a única e a última
de diversos tempos e espaços

Eu entendi que não sou maior
que o vento, ou a chuva
nem mais importante que as pedras

Eu percebi o quanto não importo
para águas, para as sombras
minhas dores são tonterias
de alguém que é passageiro
e perene.

Somente o abraço do ser que amamos
é que nos move para o amanhã.


Sobrevivência






Vivo
com a incerteza da morte deslizando em meus dias
sou nuvem, sei que flutuo como todas as sombras,
piso delicadamente na areia das minhas horas
e como toda a paisagem, sobrevivo no instante
em que sinto a respiração iluminar a minha face. 

Cada minuto é um pouco do infinito explodindo
dentro da alma, para que a vida não se esqueça
da força que brota das mãos e dos sonhos
de quem não tem medo de caminhar por ela.

Delicadamente, sinto que morro 
à espera do vale e do morro
da minha eterna saudade.

gratidão

Gratidão aos deuses pela vida
que me acorda todas as manhãs

Gratidão pela luz, pelo sol
pela noite, pelo amor

Gratidão pelas dores
pelas lágrimas, pelo leito

rio de amor que corre
em mim, ama permanentemente

gratidão pela filha que me deste, vida
pela vida que deste, filha

gratidão pelo amor






sábado, 18 de julho de 2020

Divagação


O que há para salvar nesse mundo?
O escuro da noite
as sombras das árvores
formando vultos ao longe
da estrada infinita.
Mero acaso da morte
a última imagem
o último beijo
e os olhos permanentes
em saudades.
Nada fica
a não ser a poesia
de uma dor
sem imagens.

A quimera do Cerrado

Flor do Maracujá BRS Estrela do Cerrado - Portal Embrapa


Sobrevive dentro de mim
o Cerrado em espírito e sonho,
São 45 milhões de anos
encrustrados em meu ser,
desmanchando me como
uma folha seca ao vento.
São 45 milhões de anos
gerando águas e florestas
formando rios e vales
cachoeiras, remédios
flores e mais flores
frutos doces, espinhos amargos
raízes profundas da vida
velhas rochas da criação
do mundo.

Enquanto eu pequenina
passo a ser um rastro de
folha caída em seu chão
de barro e cascas dos troncos.

As folhas do Cerrado
são tecidos aveludados,
ricas em desenho e formatos,
verdadeiras jóias dos campos.
Elas guardam o orvalho da noite
para que ele pingue devagar
na boca sedenta da terra
para ela cuspir os rios e as bicas.
As folhas abraçam as teias
das aranhas da mata,
as quais apreendem os suspiros
do tempo perdido ao longe.
Elas aquecem os bichos e os devaneios
acalanto dos insetos mateiros,
mas permanentes como folhas,
elas são mais esquecidas
do que as pedras, e pisadas
esmagadas, destruídas, humilhadas.
O humus é o choro da folha.
Eu vago e pairo no ar
como uma almofada da flor
da dor e do espanto,
há cupins que me aceitam
e formigas que me veneram,
Sou mais uma folha seca
que sumiu como a poeira,

E lá dentro da terra velha
metamorfose de todas as eras
eu me volto em água e planta.

Permanência



Há uma paisagem permanente
dentro do meu ser, do meu eu.

vastos campos cobertos
de capim cor de rosa e pássaros,

colinas longuíquas de um verde seco
estradas cobertas de pedras e cristais

um ar fresco que me banhava de luz
e me deixava ser também colina,
pedra, capim e pássaro.
Eu me esquecia que era gente
enquanto eu me entregava eternamente
àquele canto como se eu fosse
a última árvore.

Rastros


Os rastros de sonhos
que ficaram em mim,
permitem me chorar
tão baixinho
De medo de acordar
o meu vazio.
Inteira e divida
em pedaços de vida
não completada
Apenas a simplicidade
de uma dor mal chorada
é o que me move.

Solitude

A imagem pode conter: planta, flor, natureza e ar livre
Nada parece fazer sentido
quando tudo perdeu o sentido
quando apenas sobrou o vazio
quando o nada pareceu o tudo.
O que me resta agora?
Sobrou o nada
dizer me que sou ninguém
Eu apenas queria voltar
para os meus pés de outrora
pisando terras vermelhas
e macias,
O cheiro do campo silvestre
permanente em minha face,
os braços abertos, o templo
da brisa e do encanto.
Pés rachados como o solo,
enquanto minhas mãos
acareciavam o imenso
jardim selvagem.

Ensinamento

A imagem pode conter: planta, árvore, ar livre e natureza
Existem árvores
que sobrevivem aos incêndios
e sementes que germinam com o fogo.
Árvores que protegem outras árvores
Irocos, espíritos maiores que o poder
do homem.
Árvores de cascas tão grossas
que não se deixam morrer
o fogo apenas passa.
Árvores de tocas tão grandes
onde os animais se escondem
se ninam e se protegem.
E gramínias e plantas tão poderosas
que ainda ficam vivas
embaixo da terra.
Deixem a chuva chegar
deixem os rios alagarem
as encostas e trilhos,
e as sombras tomarem conta
dos últimos caminhos.
Haverá esperança
guardada naquela trilha.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Herança, Gratidão e Amor. Carta ao meu Avô Donald Savazoni.




Eu tinha 11 anos e tive o sonho mais impressionante da minha vida.  No sonho, era noite e minha mãe conversava com um senhor na sala. Eu fiquei escondida atrás da parede do corredor ouvindo a conversa, algo que toda criança curiosa gosta. Até que me deu um estralo! Eu percebi quem era aquele senhor. Era o meu avô que eu não cheguei a conhecer! Confesso que me emocionei no próprio sonho como se fosse real, senti o coração tremer e voltei para o quarto orando. Pedi a Deus que me desse a oportunidade de abraçá-lo. Como uma linda utopia, ele me chamou na sala: “Adrienne, Adrienne”. E eu em um profundo receio, sem saber se era verdade, fui devagar, enquanto ele abria os braços.
 De repente, senti o abraço mais sobrenatural que eu pude vivenciar, no qual já não sabia o que era sonho ou realidade, ficção, espírito e corpo. Só sabia que o sentimento ultrapassa qualquer limite físico, material e consciente. Suas palavras no sonho ao me abraçar perduraram no meu ser como um eco longínquo, a voz de um ancestral firme, poderosa e amorosa.
“Minha poetisa, minha poetisa” foi o que me disse naquele único momento de avô com a neta. E foram essas palavras que me definiram como pessoa por toda a minha existência. Mas não fora meu avô naquele sonho o primeiro a me chamar de poeta. Minha mãe me chamara assim quando eu tinha 8 anos e fiz os meus primeiros versos, influenciada pela sua voz doce em cantiga. Antes de eu aprender a ler e escrever, a poesia já habitava em mim, através de todas as declamações que ela nos fazia de variados poetas todas às noites.
Era tão fantástico visualizar cada palavra pronunciada e depois degusta-la em comunhão no ritmo de uma ciranda atemporal quando todas se estreitavam em ritmo, rito e rima. A dança perfeita dos sons, das bocas e das mãos. A poesia se manifestava como um canto mágico e o poeta, para mim, era uma espécie de gênio, vidente e profeta que tinha a capacidade de ir e ver além, mais do que os humanos comuns.
E exatamente isso seria o meu avô materno. Ele seria um poeta! E os poetas não morrem! Eles vivem encarnados nas palavras que escreveram, no ritmo que empregaram, no rito, no mito, no corpo do poema. Cada poema que ele escrevia era um pedaço do seu corpo e a poesia que esse poema carrega; um pedaço da sua alma. Eu não o conheci, Donald Savazoni morreu um ano antes de eu nascer em um acidente terrível em seu exercício como prefeito. Hoje eu penso que os avós não deveriam morrer nunca, porque eles representam o nosso singelo laço com a história, ao mesmo tempo em que transbordam a ternura de um presente eterno. Os avós são doçura e fazem as crianças serem ainda mais crianças. Mas ao morar 7 anos em sua casa, justo na minha segunda infância e época das primeiras letras, eu pude sentir e visualizar a sua presença. 
Eu não o via nos corredores do andar de cima, nem na sala de estar, nem na copa, nem no terraço, muito menos na cozinha. Meu avô tinha se mudado para o andar de baixo como se fosse o pai da terceira margem do rio de Guimarães Rosa. De seu salão, ele não saia. Eu descia escondida dos adultos para ouvir suas histórias. A primeira que ouvi e li foi Iracema em sua coleção completa de José de Alencar. Ele também tinha Machado, Shakespeare, Castro Alves, Lobato, Drummond, Vinícius de Morais, Érico Veríssimo, Camilo Castelo Branco e tantos outros quanto poderia caber três cômodos só de livros.
Todo dia eu escapava um pouco da casa para visita-lo. Nesta biblioteca familiar, a força do ser que ele tinha sido emanava-se de cada página amarelada. Respirar o ar de poeiras e traças me trazia o seu ar sereno, enquanto o cheiro do livro velho, o abraço que eu não pude lhe dar.  As capas úmidas eram o seu sorriso tímido. O seu jeito sério e imponente configurava-se em toda sala principal.  Sua máquina de escrever Olivetti cinza, em cima da escrivaninha de madeira, mostrava a disposição para o trabalho árduo com as palavras. Suas coleções de chaveiro, canecas e sua sanfona e seus fascículos de arte nos davam o seu gosto refinado para o belo. Além de um grande material iconográfico sobre Franco da Rocha e um caderno com os seus escritos que eu tinha pouca coragem de mexer. Parecia que ali, eu precisava de uma autorização maior, pois naqueles papéis haviam muito de seu esforço e segredo para fazer da cidade que amava; um lugar melhor e mais humano. Ele sempre me dava um livro e eu fugia para cima do telhado da minha bisavó para ler.
Aquele espaço e a voz da minha mãe foram determinantes para transformar-me no que hoje eu sou e que nunca mais eu deixaria de ser. Poeta. Eis a minha herança e também a minha salvação. A sensibilidade de brincar com as palavras fora me ensinada como a única possibilidade de existir.  
Porém, em 1993, fomos embora daquela casa e eu nunca mais vi sua biblioteca, mas eu não esqueci do cheiro e da imagem daquele porão, nunca esqueci as capas, os títulos, a disposição dos objetos e o lugar exato onde cada coisa estava. E como aminha mãe cuidava daquela biblioteca! Como também ela amava aquele espaço cheio de mistérios, histórias e conhecimento!
Minha mãe adoeceu depois de ser a única mulher a se candidatar à prefeitura de Franco da Rocha e nós perdemos tudo o que tínhamos materialmente. A sociedade a condenou porque não permitiu que uma mulher, mãe e esposa fizesse política, literatura, docência, estudasse, trabalhasse, escrevesse e ainda fosse mãe e esposa tudo ao mesmo tempo. Minha mãe me mostrou cedo como o machismo destrói as mulheres, como ele não nos tolera crescer, ser independente, fazer história e ainda sim continuar bonita, inteligente e poderosa. A sociedade quer as mulheres submissas, dóceis e fúteis, colocadas em segundo plano fazendo papel de primeira dama, mas nunca de prefeitas, professoras, escritoras, de juízas, de líderes. Eu prometi a mim mesma que eu seria a mulher o que a minha mãe foi e que ainda por dentro continuava ser, mas que essa hipocrisia e violência contra as mulheres não a permitiu atingir sua plenitude.
Depois do ocorrido coma minha mãe, eu e meus irmãos passamos por muitas dificuldades e humilhações que poucos netos de prefeito passariam na vida. Fome, solidão, espancamento, privações. Era comum eu desmaiar na escola e na rua, ser levada para o Pronto Socorro para tomar soro. A dor do estômago vazio é uma das piores dores que um ser humano pode sofrer. Em alguns momentos, tínhamos apenas açúcar derretido numa colher para enganar a fome, enquanto imaginávamos um prato suculento com vontade de saboreá-lo. Meus irmãos não tinham roupas, o sapato era dividido entre eles, a blusa de frio era rala, dormíamos no chão em colchões doados e para não sentirmos frio, nos aninhávamos um nos outros. Nossas roupas eram guardadas em caixas de papelão. Eu tinha um colega que dividia a marmita comigo na escola senão eu não almoçava. Mas algo ninguém tirava de mim e esse algo se chamava poesia.
Essa situação me ensinou que o que mais importa na vida é o que somos, o que nos tornamos e não o que temos ou aparecemos. Dinheiro, status, aparência, nada disso vale mais do que o que há dentro de si, os seus valores, os seus dons e a sua visão de mundo. Ninguém poderá te arrancar e te tirar o que você é. Isso é o que realmente lhe pertence e também o que você pode herdar dos seus antepassados.
 Apesar da carência econômica, erámos felizes, porque tínhamos uns aos outros e o carinho e amor incondicional do outro avô Nilson Morelato. Meu avô paterno ganhava pouco, mas não media esforços para cuidar dos oito netos e passar um pouco da sua fantástica história também. “Eu não sou cachorro” ele dizia, enquanto fazia papel de pai para nós todos. Ele nunca nos abandonou e seu acolhimento e seus olhos transbordavam puro amor. E ele não deixava de falar:"Se seu avô Donald tivesse aqui, ele não deixaria vocês passarem por isso”.
Adolescente e estudando no CEFAM, peguei um trabalho de levar mala direta de casa em casa de uma escola de informática. Eu tinha que andar todas as ruas do bairro do Jardim Progresso de Franco para entregar a propaganda da escola nominalmente. Mas eu não esperava no que eu ia encontrar rua por rua. Eu passava pela Rua Gabriela Mistral, Rousseau, Av Machado de Assis, José de Alencar, Honoré Balzac, Emílio Zola, Camilo Castelo Branco, Homero etc. Mais uma vez entendi o que se passava. Eu estava passeando pela biblioteca do meu avô, mas em alto relevo.
Naquela mesma época, visitei a Secretaria de Cultura por estar participando de um concurso de contos e descobri no chão do corredor do órgão, algumas caixas com livros doados. Olhei bem e pareci reconhecer as capas e títulos. Parei, fitei novamente e decidi abrir alguns livros com as minhas mãos. De repente, reconheci um desenho meu de criança, uma menininha com vestido cheio de babados! Só eu desenhava um vestido assim! Não hesitei, decidi furtar ali mesmo aqueles livros que por história e afeto deveriam ser meus.
                Não seria a falta daquela biblioteca que me faria parar de estudar, pois o espírito das letras que dela ecoava já morava em mim. Nos pertencíamos. Assim, eu vendia coxinhas na escola feitas pela minha vó paterna com o objetivo de arrecadar dinheiro para comprar os livros que eu precisava ler para o vestibular e pagar a taxa da prova.  
              Procurei fazer um cursinho popular pré-vestibular da PUC, mas não passei na seleção econômica, porque o cara que estava selecionando era da região e viu o meu sobrenome: “Savazoni e Morelato? Das duas famílias mais importantes de Franco da Rocha?” Ao final, eu agradeci não ter passado, porque eu fui no mesmo cursinho, em uma aula experimental, e fiquei o dia inteiro sem comer (o cursinho era integral aos sábados), pois não tinha 3,50 para comprar um almoço. Mas nunca esqueci do  seu preço.
Não foram os 3,50 que me evitaram de passar na UNESP. Eu entrei e cheguei em Araraquara como eu bem digo com a roupa do corpo, mas com o coração e alma preenchidos pela história de vida que meus avôs me deram de luta, superação, perseverança e, no caso do Donald, amor ao estudo. Fiz a faculdade graças ao exemplo que eles deixaram e não ao dinheiro. Terminei Letras, fiz Mestrado e Doutorado em Literatura, publiquei 3 livros e tudo o que eu mais queria era que o meu avô materno tivesse me visto pelo menos uma vez e que sentisse orgulho de mim como eu sinto todos os dias dele. Talvez ouvir como em um sonho: “Minha poetisa, minha poetisa”.
Como diz um poema seu e que eu recebi recentemente (voltaste para a família vô), escrevemos para superar a morte. A Literatura existe para transcendê-la. E toda vez que eu escrevo uma poesia, eu me deparo com o cordão umbilical que me liga a ti, bem como à voz da minha mãe terna e doce. Superamos a morte meu avô, tu já não morreste mais! Seus poemas comporão um livro! És vivo também em cada um dos seus netos batalhadores e orgulhosos de ti. Enquanto eu escrevo como forma de te dizer eu te amo! A poesia sela nosso abraço no infinito.