sábado, 18 de julho de 2020

Divagação


O que há para salvar nesse mundo?
O escuro da noite
as sombras das árvores
formando vultos ao longe
da estrada infinita.
Mero acaso da morte
a última imagem
o último beijo
e os olhos permanentes
em saudades.
Nada fica
a não ser a poesia
de uma dor
sem imagens.

A quimera do Cerrado

Flor do Maracujá BRS Estrela do Cerrado - Portal Embrapa


Sobrevive dentro de mim
o Cerrado em espírito e sonho,
São 45 milhões de anos
encrustrados em meu ser,
desmanchando me como
uma folha seca ao vento.
São 45 milhões de anos
gerando águas e florestas
formando rios e vales
cachoeiras, remédios
flores e mais flores
frutos doces, espinhos amargos
raízes profundas da vida
velhas rochas da criação
do mundo.

Enquanto eu pequenina
passo a ser um rastro de
folha caída em seu chão
de barro e cascas dos troncos.

As folhas do Cerrado
são tecidos aveludados,
ricas em desenho e formatos,
verdadeiras jóias dos campos.
Elas guardam o orvalho da noite
para que ele pingue devagar
na boca sedenta da terra
para ela cuspir os rios e as bicas.
As folhas abraçam as teias
das aranhas da mata,
as quais apreendem os suspiros
do tempo perdido ao longe.
Elas aquecem os bichos e os devaneios
acalanto dos insetos mateiros,
mas permanentes como folhas,
elas são mais esquecidas
do que as pedras, e pisadas
esmagadas, destruídas, humilhadas.
O humus é o choro da folha.
Eu vago e pairo no ar
como uma almofada da flor
da dor e do espanto,
há cupins que me aceitam
e formigas que me veneram,
Sou mais uma folha seca
que sumiu como a poeira,

E lá dentro da terra velha
metamorfose de todas as eras
eu me volto em água e planta.

Permanência



Há uma paisagem permanente
dentro do meu ser, do meu eu.

vastos campos cobertos
de capim cor de rosa e pássaros,

colinas longuíquas de um verde seco
estradas cobertas de pedras e cristais

um ar fresco que me banhava de luz
e me deixava ser também colina,
pedra, capim e pássaro.
Eu me esquecia que era gente
enquanto eu me entregava eternamente
àquele canto como se eu fosse
a última árvore.

Rastros


Os rastros de sonhos
que ficaram em mim,
permitem me chorar
tão baixinho
De medo de acordar
o meu vazio.
Inteira e divida
em pedaços de vida
não completada
Apenas a simplicidade
de uma dor mal chorada
é o que me move.

Solitude

A imagem pode conter: planta, flor, natureza e ar livre
Nada parece fazer sentido
quando tudo perdeu o sentido
quando apenas sobrou o vazio
quando o nada pareceu o tudo.
O que me resta agora?
Sobrou o nada
dizer me que sou ninguém
Eu apenas queria voltar
para os meus pés de outrora
pisando terras vermelhas
e macias,
O cheiro do campo silvestre
permanente em minha face,
os braços abertos, o templo
da brisa e do encanto.
Pés rachados como o solo,
enquanto minhas mãos
acareciavam o imenso
jardim selvagem.

Ensinamento

A imagem pode conter: planta, árvore, ar livre e natureza
Existem árvores
que sobrevivem aos incêndios
e sementes que germinam com o fogo.
Árvores que protegem outras árvores
Irocos, espíritos maiores que o poder
do homem.
Árvores de cascas tão grossas
que não se deixam morrer
o fogo apenas passa.
Árvores de tocas tão grandes
onde os animais se escondem
se ninam e se protegem.
E gramínias e plantas tão poderosas
que ainda ficam vivas
embaixo da terra.
Deixem a chuva chegar
deixem os rios alagarem
as encostas e trilhos,
e as sombras tomarem conta
dos últimos caminhos.
Haverá esperança
guardada naquela trilha.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Herança, Gratidão e Amor. Carta ao meu Avô Donald Savazoni.




Eu tinha 11 anos e tive o sonho mais impressionante da minha vida.  No sonho, era noite e minha mãe conversava com um senhor na sala. Eu fiquei escondida atrás da parede do corredor ouvindo a conversa, algo que toda criança curiosa gosta. Até que me deu um estralo! Eu percebi quem era aquele senhor. Era o meu avô que eu não cheguei a conhecer! Confesso que me emocionei no próprio sonho como se fosse real, senti o coração tremer e voltei para o quarto orando. Pedi a Deus que me desse a oportunidade de abraçá-lo. Como uma linda utopia, ele me chamou na sala: “Adrienne, Adrienne”. E eu em um profundo receio, sem saber se era verdade, fui devagar, enquanto ele abria os braços.
 De repente, senti o abraço mais sobrenatural que eu pude vivenciar, no qual já não sabia o que era sonho ou realidade, ficção, espírito e corpo. Só sabia que o sentimento ultrapassa qualquer limite físico, material e consciente. Suas palavras no sonho ao me abraçar perduraram no meu ser como um eco longínquo, a voz de um ancestral firme, poderosa e amorosa.
“Minha poetisa, minha poetisa” foi o que me disse naquele único momento de avô com a neta. E foram essas palavras que me definiram como pessoa por toda a minha existência. Mas não fora meu avô naquele sonho o primeiro a me chamar de poeta. Minha mãe me chamara assim quando eu tinha 8 anos e fiz os meus primeiros versos, influenciada pela sua voz doce em cantiga. Antes de eu aprender a ler e escrever, a poesia já habitava em mim, através de todas as declamações que ela nos fazia de variados poetas todas às noites.
Era tão fantástico visualizar cada palavra pronunciada e depois degusta-la em comunhão no ritmo de uma ciranda atemporal quando todas se estreitavam em ritmo, rito e rima. A dança perfeita dos sons, das bocas e das mãos. A poesia se manifestava como um canto mágico e o poeta, para mim, era uma espécie de gênio, vidente e profeta que tinha a capacidade de ir e ver além, mais do que os humanos comuns.
E exatamente isso seria o meu avô materno. Ele seria um poeta! E os poetas não morrem! Eles vivem encarnados nas palavras que escreveram, no ritmo que empregaram, no rito, no mito, no corpo do poema. Cada poema que ele escrevia era um pedaço do seu corpo e a poesia que esse poema carrega; um pedaço da sua alma. Eu não o conheci, Donald Savazoni morreu um ano antes de eu nascer em um acidente terrível em seu exercício como prefeito. Hoje eu penso que os avós não deveriam morrer nunca, porque eles representam o nosso singelo laço com a história, ao mesmo tempo em que transbordam a ternura de um presente eterno. Os avós são doçura e fazem as crianças serem ainda mais crianças. Mas ao morar 7 anos em sua casa, justo na minha segunda infância e época das primeiras letras, eu pude sentir e visualizar a sua presença. 
Eu não o via nos corredores do andar de cima, nem na sala de estar, nem na copa, nem no terraço, muito menos na cozinha. Meu avô tinha se mudado para o andar de baixo como se fosse o pai da terceira margem do rio de Guimarães Rosa. De seu salão, ele não saia. Eu descia escondida dos adultos para ouvir suas histórias. A primeira que ouvi e li foi Iracema em sua coleção completa de José de Alencar. Ele também tinha Machado, Shakespeare, Castro Alves, Lobato, Drummond, Vinícius de Morais, Érico Veríssimo, Camilo Castelo Branco e tantos outros quanto poderia caber três cômodos só de livros.
Todo dia eu escapava um pouco da casa para visita-lo. Nesta biblioteca familiar, a força do ser que ele tinha sido emanava-se de cada página amarelada. Respirar o ar de poeiras e traças me trazia o seu ar sereno, enquanto o cheiro do livro velho, o abraço que eu não pude lhe dar.  As capas úmidas eram o seu sorriso tímido. O seu jeito sério e imponente configurava-se em toda sala principal.  Sua máquina de escrever Olivetti cinza, em cima da escrivaninha de madeira, mostrava a disposição para o trabalho árduo com as palavras. Suas coleções de chaveiro, canecas e sua sanfona e seus fascículos de arte nos davam o seu gosto refinado para o belo. Além de um grande material iconográfico sobre Franco da Rocha e um caderno com os seus escritos que eu tinha pouca coragem de mexer. Parecia que ali, eu precisava de uma autorização maior, pois naqueles papéis haviam muito de seu esforço e segredo para fazer da cidade que amava; um lugar melhor e mais humano. Ele sempre me dava um livro e eu fugia para cima do telhado da minha bisavó para ler.
Aquele espaço e a voz da minha mãe foram determinantes para transformar-me no que hoje eu sou e que nunca mais eu deixaria de ser. Poeta. Eis a minha herança e também a minha salvação. A sensibilidade de brincar com as palavras fora me ensinada como a única possibilidade de existir.  
Porém, em 1993, fomos embora daquela casa e eu nunca mais vi sua biblioteca, mas eu não esqueci do cheiro e da imagem daquele porão, nunca esqueci as capas, os títulos, a disposição dos objetos e o lugar exato onde cada coisa estava. E como aminha mãe cuidava daquela biblioteca! Como também ela amava aquele espaço cheio de mistérios, histórias e conhecimento!
Minha mãe adoeceu depois de ser a única mulher a se candidatar à prefeitura de Franco da Rocha e nós perdemos tudo o que tínhamos materialmente. A sociedade a condenou porque não permitiu que uma mulher, mãe e esposa fizesse política, literatura, docência, estudasse, trabalhasse, escrevesse e ainda fosse mãe e esposa tudo ao mesmo tempo. Minha mãe me mostrou cedo como o machismo destrói as mulheres, como ele não nos tolera crescer, ser independente, fazer história e ainda sim continuar bonita, inteligente e poderosa. A sociedade quer as mulheres submissas, dóceis e fúteis, colocadas em segundo plano fazendo papel de primeira dama, mas nunca de prefeitas, professoras, escritoras, de juízas, de líderes. Eu prometi a mim mesma que eu seria a mulher o que a minha mãe foi e que ainda por dentro continuava ser, mas que essa hipocrisia e violência contra as mulheres não a permitiu atingir sua plenitude.
Depois do ocorrido coma minha mãe, eu e meus irmãos passamos por muitas dificuldades e humilhações que poucos netos de prefeito passariam na vida. Fome, solidão, espancamento, privações. Era comum eu desmaiar na escola e na rua, ser levada para o Pronto Socorro para tomar soro. A dor do estômago vazio é uma das piores dores que um ser humano pode sofrer. Em alguns momentos, tínhamos apenas açúcar derretido numa colher para enganar a fome, enquanto imaginávamos um prato suculento com vontade de saboreá-lo. Meus irmãos não tinham roupas, o sapato era dividido entre eles, a blusa de frio era rala, dormíamos no chão em colchões doados e para não sentirmos frio, nos aninhávamos um nos outros. Nossas roupas eram guardadas em caixas de papelão. Eu tinha um colega que dividia a marmita comigo na escola senão eu não almoçava. Mas algo ninguém tirava de mim e esse algo se chamava poesia.
Essa situação me ensinou que o que mais importa na vida é o que somos, o que nos tornamos e não o que temos ou aparecemos. Dinheiro, status, aparência, nada disso vale mais do que o que há dentro de si, os seus valores, os seus dons e a sua visão de mundo. Ninguém poderá te arrancar e te tirar o que você é. Isso é o que realmente lhe pertence e também o que você pode herdar dos seus antepassados.
 Apesar da carência econômica, erámos felizes, porque tínhamos uns aos outros e o carinho e amor incondicional do outro avô Nilson Morelato. Meu avô paterno ganhava pouco, mas não media esforços para cuidar dos oito netos e passar um pouco da sua fantástica história também. “Eu não sou cachorro” ele dizia, enquanto fazia papel de pai para nós todos. Ele nunca nos abandonou e seu acolhimento e seus olhos transbordavam puro amor. E ele não deixava de falar:"Se seu avô Donald tivesse aqui, ele não deixaria vocês passarem por isso”.
Adolescente e estudando no CEFAM, peguei um trabalho de levar mala direta de casa em casa de uma escola de informática. Eu tinha que andar todas as ruas do bairro do Jardim Progresso de Franco para entregar a propaganda da escola nominalmente. Mas eu não esperava no que eu ia encontrar rua por rua. Eu passava pela Rua Gabriela Mistral, Rousseau, Av Machado de Assis, José de Alencar, Honoré Balzac, Emílio Zola, Camilo Castelo Branco, Homero etc. Mais uma vez entendi o que se passava. Eu estava passeando pela biblioteca do meu avô, mas em alto relevo.
Naquela mesma época, visitei a Secretaria de Cultura por estar participando de um concurso de contos e descobri no chão do corredor do órgão, algumas caixas com livros doados. Olhei bem e pareci reconhecer as capas e títulos. Parei, fitei novamente e decidi abrir alguns livros com as minhas mãos. De repente, reconheci um desenho meu de criança, uma menininha com vestido cheio de babados! Só eu desenhava um vestido assim! Não hesitei, decidi furtar ali mesmo aqueles livros que por história e afeto deveriam ser meus.
                Não seria a falta daquela biblioteca que me faria parar de estudar, pois o espírito das letras que dela ecoava já morava em mim. Nos pertencíamos. Assim, eu vendia coxinhas na escola feitas pela minha vó paterna com o objetivo de arrecadar dinheiro para comprar os livros que eu precisava ler para o vestibular e pagar a taxa da prova.  
              Procurei fazer um cursinho popular pré-vestibular da PUC, mas não passei na seleção econômica, porque o cara que estava selecionando era da região e viu o meu sobrenome: “Savazoni e Morelato? Das duas famílias mais importantes de Franco da Rocha?” Ao final, eu agradeci não ter passado, porque eu fui no mesmo cursinho, em uma aula experimental, e fiquei o dia inteiro sem comer (o cursinho era integral aos sábados), pois não tinha 3,50 para comprar um almoço. Mas nunca esqueci do  seu preço.
Não foram os 3,50 que me evitaram de passar na UNESP. Eu entrei e cheguei em Araraquara como eu bem digo com a roupa do corpo, mas com o coração e alma preenchidos pela história de vida que meus avôs me deram de luta, superação, perseverança e, no caso do Donald, amor ao estudo. Fiz a faculdade graças ao exemplo que eles deixaram e não ao dinheiro. Terminei Letras, fiz Mestrado e Doutorado em Literatura, publiquei 3 livros e tudo o que eu mais queria era que o meu avô materno tivesse me visto pelo menos uma vez e que sentisse orgulho de mim como eu sinto todos os dias dele. Talvez ouvir como em um sonho: “Minha poetisa, minha poetisa”.
Como diz um poema seu e que eu recebi recentemente (voltaste para a família vô), escrevemos para superar a morte. A Literatura existe para transcendê-la. E toda vez que eu escrevo uma poesia, eu me deparo com o cordão umbilical que me liga a ti, bem como à voz da minha mãe terna e doce. Superamos a morte meu avô, tu já não morreste mais! Seus poemas comporão um livro! És vivo também em cada um dos seus netos batalhadores e orgulhosos de ti. Enquanto eu escrevo como forma de te dizer eu te amo! A poesia sela nosso abraço no infinito.